Arreia,
arreia, arreia...
Final
de tarde. Fila serpenteando na espera do ônibus Parangaba-Papicu. Uma súcia de
estudantes encurrala em círculo fechado seu Antônio das Nuvens, um velho que
perdeu o juízo e a moral nas paradas da vida. Vulgarmente batizado de “Dona
Tonha”, seu Antônio leva a vida perambulando de terminal em terminal, esculachando
Deus e o mundo com um repertório de palavrões invejável.
Ele
provoca. Fica intimando para ficar aporrinhado até soltar o verbo e a franga.
Diz a lenda que em outros tempos exercera a profissão de médico, tivera esposa,
filhos, dinheiro e que fizera parte do clã de uma tradicional família do norte
do Estado. Ninguém sabe ao certo.
O
fato é que hoje, beirando 70 anos, anda rebolando, com uma flor atrás da orelha
e sacudindo uma saia imaginária. “Tu virou viado depois que ficou doido? Ou
ficou doido depois que virou viado?”
A
meninada exaspera seu Antônio que ouve o insulto, desce do salto, risca a faca
e espalha a garotada na risadaria. Nesse dia, mergulhei nas lembranças da
infância em Juazeiro do Norte onde mexer com doido era a aventura predileta na
volta da escola.
Estudei
em colégio de freiras, rígido, no tempo das aulas de OSPB, EMC e onde as irmãs
pelejavam para ensinar bordados em panos de prato e bicos de crochê, aplicados
em toalhas de rosto. Mas, felizmente, a escola ficava em frente à Matriz de
Nossa Senhora das Dores, epicentro das romeiradas que acontecem o ano inteiro e
era difícil segurar na sala de aula um bando de adolescentes que queria ficar
nos batentes da Igreja, comendo bolo de puba com cajuína, paquerando os
romeirinhos e vendendo dindim e fita K7 com o sermão do Padre Murilo. Tudo ao
som de Márcio Greyck que troava numa rural laranja, ornada com seis megafones vermelhos
no teto (contraí matrimônio, anos depois, com o proprietário desse veículo).
Naquele
final de tarde, no terminal de ônibus, olhando seu Antônio das Nuvens, pesaram
na consciência duas lembranças: os anos a fio em que perturbei a Amaral, uma
senhora que vivia na frente do colégio, arribando a saia e arremessando pedra
em quem a chamasse de doida, e a perseguição ferrada ao Miguel Penitente, um
errante que caminhava de cruz nas costas, assoviando e benzendo os quatro
cantos da cidade.
Como
essas duas figuras lendárias tiveram muitas. Lembro que era sempre na época das
grandes romarias, quando disputávamos brechas atrás do altar para espiar a
igreja entupida de vela acesa, lenço branco e chapéu de palha, que os
paus-de-arara deixavam para trás levas de mendigos vagando pela cidade.
Mesmo
com os pecados da semana expiados na confissão de domingo, na segunda-feira
começava tudo novamente. Os caminhões iam embora e ficávamos pela praça, depois
da aula, pleno meio-dia, reparando nos novos romeiros que por ventura tivessem
ficado por ali.
O
tempo ainda era de caderno do catecismo, calça azul e conga branco, sem Parangaba-Papicu...Mas
a gritaria no meio do mundo era a mesma: arreia, arreia, arreia...